A última vez que reparou na hora eram 4h37'. Nem tanto pelo horário em si, mas porque era um relógio de bolso feito em ouro maciço, furtado do seu único cliente da noite. O único que pôde bancar um "encontro" com ela! Ele sequer percebera a suave e leve mão descer pelo bolso interno de seu paletó. Talvez estivesse excitado demais para imaginar que aquele abraço quente e carinhoso tinha terceiras intenções. Todavia, aquele era o enlace perfeito para que ela lhe tomasse o relógio sutilmente. Era prática comum na zona de baixo meretrício, mas ela não gostava disso, só fazia para garantir o "extra" para pagar os seus informantes.
Já havia tempo que o rendimento do ofício não era o mesmo. Não por falta de qualidade em seus serviços, mas, devido à escassez de trabalho e à longa recessão pela qual passava o país, aumentou a oferta de "damas de companhia", e, com isso, poucos clientes aceitavam pagar tão bem, como aquele que ela acabara de atender! Ele era um contador. Parecia ser homem distinto. Ela ouvira seu pai falar dos contadores que faziam os balanços e balancetes de suas empresas. Dizia que era sensato tê-los como aliados, pois "com dinheiro não se brinca!". E dinheiro os contadores levavam bastante a sério.
Lembranças antigas que se esvaíam com a balançada de sua cabeça, que soltava os cachos presos e tingidos de preto, emoldurando seu rosto pálido, ainda belo, mas carregado de maquiagem... batom vermelho carmim... cílios duplos e alongados. Uma pinta como detalhe final, perto do canto esquerdo do lábio superior. Aquela linda menina de outrora, agora tornara-se mulher... Mulher da vida. As tias solteironas e encalhadas com quem teve que viver depois da morte dos seus pais, cobravam dela um marido rico que as tirasse daquela situação de miseráveis!
Sozinha no mundo, revoltada com a vida, fugiu de casa jurando vingar-se de quem matou seus pais. Enrolando-se em seu xale velho, seguiu sem caminho certo. Vivera muitas e muitas vidas até chegar onde chegou, e por último era mulher da noite. Mas agora, finalmente, já estava perto da hora de amanhecer... Era chegada a hora de acordar. Acordar desta noite sem fim, de anos de busca! Estava na hora de dar um fim nisso tudo. Era preciso! E tinha que ser agora! Era a hora da justiça!
Borrifou em si o perfume doce-almiscarado, retocou sua maquiagem e delineou os olhos. Prendeu bem o espartilho, e, por baixo, a arma que conseguiu na semana anterior, do general reformado que caiu embriagado na cama e... só dormiu! Melhor para ela! Agora de volta à vingança... Depois de anos de busca, finalmente descobriu quem mandou mexer nos freios do carro do seu pai, na noite em que o Cadillac S42 Preto capotou serra à baixo, e explodiu...! Agora apenas alguns cômodos os separavam... Ela, a mais bela e cara dama do maior bordel da cidade, aonde iam todos os homens influentes da nata da sociedade! Ele, o seu alvo sem rosto. O crápula que tirou da doce menina toda a magia de uma vida inocente e feliz ao lado dos seus pais.
Seguiu estritamente seu plano. Abriu a porta de seu camarim, jogou seu cachecol de plumas para trás e montou seu sorriso. Desceu as escadas aos risos travessos de menina levada. Entrou no quarto onde estava o homem que ela ia matar à queima-roupa, olhando fixo nos olhos dele, observando a vida dele ir embora aos poucos...
Ao entrar no quarto, lá estava, de costas e envolto em uma nuvem de fumaça de charuto, o velho grisalho com cheiro de conhaque. Era ele... do jeito que descreveram para ela.
Ela agiu como tinha planejado... Fechou a porta com duas voltas na chave, soltou a fivela que prendia o revólver, e correu aos saltinhos sapecas para sentar em seu colo e prendê-lo entre as pernas. Olho no olho, mão no cano gelado da arma, a mira entre os olhos do miserável... E parou! Não podia ser... Era impossível! De um pulo saiu do colo do velho, que estava mais branco que fantasma... Talvez até o fosse! Mas como assim? O homem que ela tinha em sua mira, que ela buscou por tantos anos, que passou por tanto sofrimento para finalmente vingar-se... Era seu pai! Seu próprio pai!
Rápido ele tentou explicar-se e pedir perdão à filha. Disse que tudo foi planejado para que ele recebesse o dinheiro do próprio seguro de vida; que ela deveria ter ido com ele naquele mesmo dia; que sentia muito ter se separado dela; que ele ia achar um meio de voltar para buscá-la, e ficou desesperado quando descobriu que ela tinha fugido; que ele nunca parou de procurá-la; que sua mãe não o perdoara pelo que fez e morrera de desgosto menos de um ano após a sua morte forjada, e que ela sempre fora contra esse plano, mas ele não podia ficar pobre, e estava falido e precisava do dinheiro do seguro, e... E num tempo de cinco minutos, toda a tramoia fora desarmada diante dela. Seu pai implorava perdão. Chorava agora por todos os anos de ausência...
Toda a sua vida sofrida de pequena órfã passou diante dos seus olhos cor de caramelo, assustados... Atônitos... Vagos.
A moça virou-se então para seu pai e sorriu. Alisou seu rosto enrugado e os cabelos grisalhos, agora ralos, que há tanto tempo não via... Então despediu-se e puxou o gatilho! Um tiro na testa dele! Seu pai já havia morrido anos atrás! Aquele era apenas uma carcaça de um nada! Finalmente pôde acabar com a vida do homem que matou seu pai... ele próprio! Ela, agora, sentia-se vingada!
Flávio Augusto Albuquerque
*1º Lugar no IX Sarau, Prosa, Verso e Fotografia - CCBB-BH, em 26/08/2014.
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